Por Fabiana Esteves
Hoje revivi cenas que parecem tão longe e ao mesmo tempo tão perto. Em poucas horas a casa que eu tinha “dado um jeitinho” estava tomada por um dilúvio de papelão, sementes e cascas de ovo. Ísis, depois de ver o preço alto de um tabuleiro de mancala (jogo africano), resolveu construir um. Num instante ativou o modo habilidades artísticas e seguiu numa persistência invejável. Voltei no tempo, lá na infância recente das meninas e lembrei de coisas que me faziam sentar e contemplar as pequenas atitudes que dizem muito. Mais um pouco e eu estava lá, assistindo a um espetáculo de fantoches cujo palco era um lençol sustentado por duas cadeiras. Esquecendo as tarefas do dia entretida com as bonecas dentro da cabaninha. Desistindo de apagar as pinturas que se tatuaram sozinhas no silêncio nas paredes do apartamento. Previsível. Inúmeras tentativas de fazer um biscoito doce com açúcar demais e o semblante triste, fitando ele todo derretido no papel manteiga. Esquecendo de levantar cedo no sábado de manhã e ser tomada por uma avalanche de corpos infantis escalando a cama de casal. Vitamina de banana. Sambinha ainda de camisola. Eu levantei e o material de criação estava todo espalhado pela sala e no meio, no chão, um tabuleiro de xadrez japonês impresso, recortado, montado e arrumado, esperando que duas pessoas se aventurassem a jogar. Ela passou a noite em claro. Ontem à noite, enquanto remoíamos uma descarga disparada jorrando águas inúteis, ela não encontrou em nós um porto seguro e procurou sua própria válvula de escape. Nós estávamos mais preocupados com a válvula que conteria o dilúvio escatológico. A válvula ORIENTE 40 mm. Eu que vivo a orientar as práticas pedagógicas alheias, deixei-me banhar, desorientada, nas águas da indiferença. Acontece. Nem sempre consigo ser lugar de cura. Ela dorme e eu ouço Teatro Mágico, que me leva de volta às panelinhas, aos livros antes de dormir, aos modelitos de fralda e aos poemas recitados ao pé do ouvido. E aí, quando ela acordar vamos jogar xadrez?
Nas fotos acima, Fabiana Esteves e suas filhas Ísis e Laís.
Autoria
Fabiana Esteves é Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNiRIO) e Especialista em Administração Escolar. Trabalhou como professora alfabetizadora na Prefeitura do Rio de Janeiro e no Estado do Rio com Educação de Jovens e Adultos. Trabalhou como assessora pedagógica e formadora nos cursos FAP (Formação em alfabetização Plena) e ALFALETRAR, ambos promovidos pela Secretaria de Educação do mesmo município. Também foi Orientadora de Estudos do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, programa de formação em parceria do município com o MEC. Em 2015 coordenou a Divisão de Leitura da SME de Duque de Caxias (RJ). Atualmente, é Orientadora Pedagógica da Prefeitura de Duque de Caxias, onde tem se dedicado à formação docente. Escritora e poeta, participou de concursos de poesia promovidos pelo SESC (1º lugar em 1995 e 3º lugar em 1999) e teve seus textos publicados em diversas antologias pela Editora Litteris. Escreve para os blogs “Mami em dose dupla” e “Proseteando”. Publicou os livros “In-verso”, "Pó de Saudade", "Maiúscula", "A Encantadora de Barcos", "Coisas de Sentir, de Comer e de Vestir" e "Mãe Também Engole Água Salgada". É mãe das gêmeas Laís e Ísis.
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