Por Fabiana Esteves
Agora que compartilhamos o mesmo ofício, depois da primeira publicação oficial, vejo que a aprovação do mundo legitimou a escrita que teimava latente no peito adolescente. Eu era só a mãe. Agora, mudei de função, sou a leitora beta, a agente literária, a revisora e, principalmente, a copidesque. Eu vou inventar um nome melhor para este trabalho tão afetivo que nos faz sorrir, gritar e produz os mais loucos acessos de fúria. Sim, nem sempre pedir minha opinião significa querer ouvi-la. Nem sempre significa aceitá-la, acatá-la. Nem sempre significa render-se ao meu olhar crítico no lugar de só materno. A mãe do atleta abraça e chora quando o filho sobe feliz no pódio, mas também acolheu a exaustão, ajudou a curar as feridas e a diminuir as dores do treinamento intensivo. Assim também é para nós escritores, quando, no dia do lançamento, as fotos e os autógrafos apagam todas as reescritas, as noites em claro e as revisões que ultrapassam o limite de um perfeccionismo aceitável. Sim, não sei se isso existe, mas por aqui há folhas que voam, há caras feias e portas que se batem. Estas atitudes até podem me fazer silenciar por um momento, mas nunca recuar. Exatamente como o treinador que sabe do potencial físico do seu pupilo, sei a hora de dar um tempo e a hora de voltar.
Laís finalmente deixou de dizer que não é escritora e assumiu o posto, com todas as agruras e deleites que abraçam a tortuosa estrada da poesia e da ficção. Ouviu a autora mais vendida do Brasil definir perfeitamente o ato libidinoso de ser lido: o outro te invade, e você permitiu. Entregou a ele a sua alma, ainda que o personagem não seja nada parecido com o seu retrato. Você vai escrever querendo que o leitor chore, mas ele pode rir. Há que lidar com a própria nudez pública. Não há atentado ao pudor. Não há quem nos proteja. Ela desistiu dos pseudônimos e da invisibilidade da Elena Ferrante. O texto já ganhou boca, e como trazê-lo de novo a si? Ele já se espalhou no ar, não há como vê-lo, não há como recolher seus fragmentos invisíveis.
Ísis luta diariamente com a vontade de escrever e a dificuldade com a forma e com as figuras de linguagem, próprias da sua condição neurodivergente. No entanto, percebo uma história que está dentro dela, mas precisa ultrapassar todas essas barreiras para se mostrar. Dedicar-se ao que não é exatamente o seu hiperfoco, ou não deixar que ele domine a narrativa é um exercício exaustivo e acho que posso dizer até doloroso para ela. Em uma das histórias que criou, precisei intervir muito para que viesse à tona o que realmente ela queria dizer. Resultado: uma crise, uma revolta comigo, consigo, uma sensação grande de impotência, muito choro e grito. Parei. Recuei. Inútil, é claro. Ela bateu a porta com força. Mas horas depois, voltou com um novo texto, revigorado, agora pronto para ganhar o mundo. Ontem aconteceu o mesmo. O capítulo não me fisgou, pairava objetivo demais na folha branca. Cadê a palavra que vai me puxar para o mundo onde habita esse personagem, com suas angústias, dúvidas e medos? -perguntei. Ela não gostou. Nova crise, choro, eu tentei recuar pedindo para aguardar o fim do capítulo seguinte, mas ela mesma não aceitou. E algumas horas depois, assim como da outra vez, o texto retornou às minhas mãos, mas já não era o mesmo. A narrativa me colou no enredo, provocando as mais diversas sensações. Medo, angústia, dúvida e alumbramento. Estava tudo ali. Eu me surpreendi com a explosão que gerava o roteiro de tantas nuances. Ela finalmente sorriu aliviada.
Sigo no meu exercício de realizar uma leitura crítica afetiva e respeitosa, ajudando a acordar as palavras que ainda dormem nas minhas jovens autoras. Não é dom, não veio de berço, não é uma inspiração que brota do nada. É só o resultado de muito trabalho.
Nas fotos acima, Fabiana Esteves e suas filhas Ísis e Laís.
Autoria
Fabiana Esteves é Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNiRIO) e Especialista em Administração Escolar. Trabalhou como professora alfabetizadora na Prefeitura do Rio de Janeiro e no Estado do Rio com Educação de Jovens e Adultos. Trabalhou como assessora pedagógica e formadora nos cursos FAP (Formação em alfabetização Plena) e ALFALETRAR, ambos promovidos pela Secretaria de Educação do mesmo município. Também foi Orientadora de Estudos do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, programa de formação em parceria do município com o MEC. Em 2015 coordenou a Divisão de Leitura da SME de Duque de Caxias (RJ). Atualmente, é Orientadora Pedagógica da Prefeitura de Duque de Caxias, onde tem se dedicado à formação docente. Escritora e poeta, participou de concursos de poesia promovidos pelo SESC (1º lugar em 1995 e 3º lugar em 1999) e teve seus textos publicados em diversas antologias pela Editora Litteris. Escreve para os blogs “Mami em dose dupla” e “Proseteando”. Publicou os livros “In-verso”, "Pó de Saudade", "Maiúscula", "A Encantadora de Barcos", "Coisas de Sentir, de Comer e de Vestir" e "Mãe Também Engole Água Salgada". É mãe das gêmeas Laís e Ísis.
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