Infância em Sol Maior
- Panóplia Editora
- 21 de jan.
- 3 min de leitura
Por Fabiana Esteves

Estou aqui ouvindo as músicas que minha mãe ouvia e pensando como era tão mais fácil antes, na nossa infância privilegiada de quintais, tartarugas e escadarias próprias para se descer correndo. Eu odiava as músicas que ouviam meus pais, e hoje amo. Agora tenho apreço por aquelas pequenas coisas que faziam a negociação por um espaço na vitrola uma porta aberta às novas descobertas, a mergulhar no espaço do outro sem permissão. Uma falta de privacidade, diriam hoje. A casa cheia nunca foi desculpa para não se ter o necessário. Meu avô avisava a todos que meu primo arteiro chegaria para deixá-lo completamente louco. Minha tia corria atrás do meu primo com o chinelo na mão e eu assistia rindo, porque ela nunca conseguia pegá-lo. Os filhos e filhas, os netos e netas, os primos e primas, os tios e tias moravam todos na mesma rua. As festas nunca eram superproduções e nós pequenos, ajudávamos em tudo, inclusive a enrolar os croquetes que minha vó fazia, fingindo-se de zangada quando a gente surrupiava a massa e a mastigava ainda crua. Ainda sinto o gosto dela, macia e alaranjada deslizando na nossa mão. As escadarias pediam incessantemente que a gente descesse correndo, continuando as voltas no canteiro onde não se podia pisar. Uma vez miúdos, ele nos parecia imenso, um mundo vasto mundo onde era possível ser alegre nos instantes plenos de uma liberdade assistida. Cheiro de bolo ou de fritura tomava conta do ar e não vinha de nenhuma caixa de papelão da padaria mais próxima. Vinha de casa mesmo. Tínhamos mais tempo? Será? Ou o trabalho de se doar não tem o mesmo valor? Invento uma nova receita e não tenho mais o auxílio luxuoso típico da infância. Onde guardamos nossas infâncias? A minha transborda na cozinha, na literatura, na fé e na música. Nem sempre encontro companhia para reviver os anos incríveis onde a conexão não podia cair, porque era simplesmente a ligação afetuosa que eu tinha com os meus e que foi se dissolvendo com o tempo. Hoje muitas das nossas conexões dependem de um fio de fibra óptica e como parecem frágeis! A música que escuto vem de um aplicativo que me tirou o prazer de comprar discos, mas ainda é a mesma, ainda me toca, me balança o corpo e me alenta a alma como antes. E me leva aos quintais da infância. Felizmente.

Nas fotos acima, Ísis e Laís, filhas de Fabiana Esteves em família.
Autoria

Fabiana Esteves é Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNiRIO) e Especialista em Administração Escolar. Trabalhou como professora alfabetizadora na Prefeitura do Rio de Janeiro e no Estado do Rio com Educação de Jovens e Adultos. Trabalhou como assessora pedagógica e formadora nos cursos FAP (Formação em alfabetização Plena) e ALFALETRAR, ambos promovidos pela Secretaria de Educação do mesmo município. Também foi Orientadora de Estudos do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, programa de formação em parceria do município com o MEC. Em 2015 coordenou a Divisão de Leitura da SME de Duque de Caxias (RJ). Atualmente, é Orientadora Pedagógica da Prefeitura de Duque de Caxias, onde tem se dedicado à formação docente. Escritora e poeta, participou de concursos de poesia promovidos pelo SESC (1º lugar em 1995 e 3º lugar em 1999) e teve seus textos publicados em diversas antologias pela Editora Litteris. Escreve para os blogs “Mami em dose dupla” e “Proseteando”. Publicou os livros “In-verso”, "Pó de Saudade", "Maiúscula", "A Encantadora de Barcos", "Coisas de Sentir, de Comer e de Vestir" e "Mãe Também Engole Água Salgada". É mãe das gêmeas Laís e Ísis.
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