Por Gilson Salomão Pessôa
A primeira sequência do filme “Anti-herói americano” apresenta de forma genial o seu protagonista: Na década de 50, em meio a uma fileira de crianças fantasiadas para o Halloween e pedindo doces, uma delas não está. Quando indagada sobre o porquê de tal comportamento ela responde: “sou apenas um garoto da vizinhança, ok? Deus! Por que as pessoas tem que ser tão idiotas?”
Assim é Harvey Pekar. Excluído desde cedo do convívio “normal” por causa de seu aguçado senso crítico, não mede palavras para dizer o que pensa. Emocionalmente cansado e com uma baixa auto-estima, recebe duas péssimas notícias: está sendo abandonado pela namorada e perdendo a voz por causa de um nódulo nas cordas vocais, que por sua vez está relacionado ao fato de o mesmo estar sempre nervoso e gritando.
Trabalhando como arquivista em um hospital de Cleveland, está constantemente frustrado e seus únicos prazeres são seus quadrinhos underground e os LPs de Jazz que coleciona compulsivamente. Deseja deixar seu “recado” para as gerações posteriores e a angústia é tanta que, mesmo sem saber desenhar, escreve uma HQ subversiva onde se insere como personagem principal.
Percebendo o potencial do conteúdo, o amigo e famoso cartunista Robert Crumb pede para ilustrar a história. Nasce então “Esplendor Americano”, uma revista em quadrinhos que serve como espelho das decepções e anseios do homem pós-moderno, onde Harvey relata o seu cotidiano, pontuando de forma crítica tudo aquilo que presencia.
Harvey tem uma relação simbiótica com seu simulacro, que está sempre mudando de forma em função da variedade de ilustradores que o retrata. Em um certo ponto do filme, ciente de sua mortalidade, ele pergunta à sua esposa Joyce: “Eu sou apenas uma pessoa que expõe sua vida num gibi ou meu personagem sobreviverá à minha morte?”
Além da sinopse genial, o filme dirigido por Shari Springer Berman e Robert Pulcini ainda nos brinda com uma estrutura igualmente interessante, confrontando o verdadeiro Harvey (que narra o filme em off), sua esposa e amigos com a versão ficcional dos mesmos. Em uma determinada sequência ele comenta ”Esse sou eu, ou o cara que me interpreta. Ele não é parecido comigo, mas tudo bem.”
O enquadramento da película dialoga com o da HQ nas várias sequências em que os mesmos são intercalados. Em certos pontos do filme eles chegam inclusive a se fundir.
Vale chamar a atenção para a atuação ímpar de Paul Giamatti, que retrata o cartunista como alguém que parece estar sempre com um peso nos ombros, como se carregasse nas costas o fardo de todo o seu inconformismo. Hope Davis está igualmente fantástica como a esposa que, apesar do apoio frequente, insiste em diagnosticar os problemas psicológicos do cônjuge e de todos que o rodeiam.
O que torna o filme e o quadrinho tão interessantes e únicos é que ambos relatam um universo de pessoas comuns, com sonhos e mágoas próprias de todos nós. Nada é maquiado ou romantizado. A complexidade está nos pequenos detalhes que revelam as singularidades de cada personalidade. É o particular que se projeta universalmente.
Autoria
Gilson Salomão Pessôa é jornalista formado em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, com Pós Graduação em Globalização, Mídia e Cidadania pela mesma faculdade. Publicou os livros "Histórias de Titãs Quebradiços" e "Um Suspiro Resgatado".
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